Softwares sociais: uma visão orientada a valores

نویسندگان

  • Roberto Pereira
  • Maria Cecília Calani Baranauskas
  • Sérgio Roberto P. da Silva
چکیده

Social software have been triggering transformations that are changing the way people relate, use and are affected by technology. The opportunities and challenges brought by this kind of interactive systems require traditional methods of design and evaluation to be rethought and new concepts, such as human and technical values, be considered in computing systems. This paper presents a discussion on the concept of social software and places this kind of system in the context of human and technical values. As main contribution, it presents a set composed of 27 personal, social and technical values identified through an extensive literature review for supporting social software analysis. RESUMO Os softwares sociais tem sido desencadeadores de transformações que estão alterando o modo como as pessoas se relacionam, utilizam e são afetadas pela tecnologia. As oportunidades e os desafios trazidos por esse tipo de software interativo exigem que os métodos tradicionais de design e avaliação sejam repensados e que novos conceitos, como valores humanos e técnicos, sejam considerados em sistemas computacionais. Este artigo apresenta uma discussão sobre o conceito de software social e coloca esse tipo de sistema no contexto de valores humanos e técnicos. Como principal contribuição, propõese um conjunto composto por 27 valores pessoais, sociais e técnicos para apoiar a análise de softwares sociais. Palavras-chave Software social, valores, web social INTRODUÇÃO A Web 2.0 foi um marco no desenvolvimento de aplicações caracterizadas pela colaboração, comunicação e interatividade entre os usuários de forma e em escala inéditas [32]. A possibilidade de desenvolver aplicações mais ricas e inovadoras em termos de interatividade, permitiu o surgimento dos chamados Softwares Sociais (e.g., Youtube, Orkut, Flickr, Delicious, Twitter) e colaborou para uma mudança de paradigma: mais do que interligar documentos, páginas ou recursos, a Web hoje interliga pessoas, organizações e conceitos, dando origem à chamada Web Social. Dentre as principais características dos softwares sociais podemos citar a necessidade de uma massa crítica de usuários e uma grande quantidade de conteúdo produzido por eles [14]. Nos softwares sociais, milhões de usuários interagem, se comunicam, criam, compartilham e organizam conteúdos, demonstrando a “força do coletivo”, as oportunidades e o conhecimento que podem ser gerados pelo trabalho conjunto e pela interação em massa [32]. Porém, por ser totalmente dependente dos usuários, o êxito desses sistemas depende fortemente de aspectos da Interação Humano-Computador (IHC) relacionados, por exemplo, com fatores emocionais, sócio-culturais e técnicos, incluindo a forma como os recursos de interface são empregados. Os softwares sociais representam um grande desafio para a comunidade de pesquisa não apenas em IHC, Sistemas Colaborativos ou Engenharia de Software, mas também em Banco de Dados, Redes de Computadores, entre outras áreas ligadas à infraestrutura, abrangendo também disciplinas que vão além da computação (e.g., Sociologia, Psicologia, Antropologia, Direito, Comunicação, etc.). Como mencionado no workshop realizado em Sevilha, na Espanha, para discutir como seria IHC em 2020 [30], nós agora vivemos com a tecnologia, não apenas a usamos. Isso implica na existência de um amplo conjunto de fatores que abrange desde aspectos emocionais e afetivos, de sociabilidade, valores humanos, até questões de segurança, escalabilidade e desempenho. Deste modo, para que seja possível desenvolver tecnologias que realmente atendam às necessidades dos usuários, considerando suas diversidades e limitações, é preciso compreender as novas formas de interação e de relações sociais. É preciso considerar a interação das pessoas com a tecnologia, entre as próprias pessoas, com seus objetos do dia-a-dia e também com o ambiente, compreendendo os valores envolvidos nessas interações. Nesse sentido, Harrison et al. [13] apresentam discussões que apontam para a 3a onda em IHC. Comparada às 1a e 2a ondas, nas quais havia uma orientação para as questões de ergonomia e fatores cognitivos respectivamente; a 3a onda trata da multiplicidade e do estabelecimento de sentido. Nela os artefatos e seus contextos estão mutuamente definindo e sendo sujeitos de diferentes interpretações. Essa visão de multiplicidade é ainda mais pertinente no contexto das aplicações sociais, nas quais os requisitos estão em constante mudança devido à variedade de usuários, seus valores e dispositivos de interação. Efetivamente, os softwares sociais representam parte das transformações que têm redefinido nosso relacionamento com a tecnologia (e.g., o aumento da hiperconectividade; o fim do efêmero; o aumento do envolvimento criativo; o aumento da dependência da tecnologia) [30]. Essas transformações provocam questões que a área de IHC não tinha que se preocupar antes, pois o relacionamento dos usuários com a computação agora vai além de estarem sentados na frente do computador preparando slides ou digitando textos. Por exemplo, quais técnicas de interação e que tipos de interface são adequados para apoiar a interação e a comunicação em massa? Como auxiliar as pessoas a gerenciar a sobrecarga de informação a que são expostas? Quais valores as aplicações devem favorecer e quais elas devem inibir? Como desenvolver sistemas que atendam efetivamente a essas demandas? Harrison et al. [13], assim como Sellen et al. [30], enfatizam a necessidade de se desenvolver e publicar estudos que auxiliem projetistas e avaliadores a lidarem com a complexidade e com os requisitos diferenciados que as aplicações sociais apresentam. Neste artigo, investigamos o conceito de software social e discutimos esse tipo de sistema do ponto de vista dos valores envolvidos (e.g., confiança, reputação, autonomia, colaboração, etc.). Para isso, apresentamos uma discussão teórica sobre o termo software social e sua definição. Com o objetivo de ampliar a discussão em torno de valores em softwares sociais, propomos um conjunto de 27 elementos identificados na literatura; os classificamos em termos de valores pessoais, sociais e técnicos; e demonstramos, por meio de exemplos, como esse conjunto pode auxiliar a compreender e identificar os valores envolvidos em softwares sociais. Finalizamos o artigo com uma agenda de pesquisa na área de software social e suas aplicações. SOFTWARES SOCIAIS: REVISÃO DE LITERATURA Embora o conceito de software social seja relativamente novo, discussões em torno do design de sistemas colaborativos vêm recebendo atenção da academia há mais de duas décadas. Winograd e Flores [38] discutem sobre os impactos dos sistemas nos relacionamentos sociais de seus usuários e enfatizam que esses impactos devem ser levados em conta ao se projetar um sistema. Ackerman [1] também defende que o grande desafio ao se projetar um sistema é de caráter social e não tecnológico. Para o autor, os sistemas atuais não atendem satisfatoriamente os requisitos de compartilhamento de informação, de políticas sociais de grupos, responsabilidades, entre outros, porque não possuímos conhecimento sobre como desenvolver sistemas que suportem eficientemente o mundo social. Neste mesmo contexto, ao abordar questões sobre o design de sistemas colaborativos, de Souza [34] afirma que a qualidade da comunicação e das ações que os usuários experimentarão ao utilizar um sistema é determinada pelos seus designers, porque a forma como um sistema é projetado estabelece as percepções dos usuários sobre si, sobre os outros, bem como as reações individuais e coletivas a essas percepções. Neris et al. [23], por sua vez, sugerem que a diversidade de habilidades dos usuários está entre os fatores que tornam o design desses sistemas tão complexos. Os autores apontam a necessidade de conhecer os usuários em suas habilidades, formalizando os requisitos de interação e investigando soluções de interação/interface para a diversidade. Os sistemas devem refletir uma compreensão sobre o modo como as pessoas realmente vivem e trabalham em suas organizações, comunidades, grupos, e outras formas de vida coletiva. Caso contrário, como Ackerman [1] argumenta, os sistemas produzidos serão inúteis, distorcendo e automatizando de forma ineficiente a colaboração, comunicação e outras atividades sociais. Essas considerações sobre sistemas colaborativos também são válidas para o contexto de softwares sociais. De fato, como exposto por Dron [10], a grande diferença entre ambos os conceitos parece estar no número e na diversidade dos usuários, na quantidade de informação criada e compartilhada pelos mesmos, e nas possibilidades de interação com o sistema e com outros usuários. Discussões sobre o termo Software Social O termo “software social” é utilizado em muitos contextos e diferentes tecnologias são cobertas pelo mesmo. Inspirados na discussão de Lazar e Preece [18] sobre comunidades online, podemos dizer que o conceito de software social normalmente é subjetivo: ele é fácil de entender e reconhecer, mas é instável de definir e ainda mais complicado de se medir. Uma das primeiras definições para o termo, e uma das mais amplamente discutidas, foi apresentada por Shirkly [31] como “softwares que suportam a interação em grupo”. Klamma et al. [16] consideram, genericamente, softwares sociais como “ferramentas e ambientes que suportam atividades em redes sociais digitais”, e Smith [33], como “softwares que permitem às pessoas se conectarem por meio de uma comunicação mediada por computador”. Nessa mesma linha, para Chatti et al. [7] softwares sociais são ferramentas para aumentar as habilidades sociais e colaborativas das pessoas e um meio de facilitar a conexão social e a troca de informação. Autores, como Klamma [16] e Smith [33] argumentam que software social é um termo pobremente definido. Em partes, isso ocorre porque tecnologias, ferramentas e conceitos sociais são misturados e não são claramente explicados. Sistemas, tais como a Wikipédia, o Facebook e o Youtube são amplamente aceitos como sociais. Do mesmo modo, Wikis e Blogs também são incluídos nessa categoria. A Wikipédia é um Wiki, mas ela é considerada um software social por causa da tecnologia Wiki ou pela forma como ela é utilizada por seus usuários? Deste modo, percebe-se que os critérios de classificação variam não somente de acordo com as tecnologias usadas, mas também com aspectos pragmáticos de utilidade e aplicabilidade. Outro ponto comumente mencionado é que a Internet sempre incorporou uma rede de indivíduos conectados por meio de tecnologias sociais. Algumas delas, como o e-mail, chats e fóruns de discussão estão disponíveis há muito tempo [10, 31]. Entretanto, como McLoughlin e Lee [21] argumentam, as ferramentas de software sociais atuais não apóiam apenas a interação social, a conversação, o feedback e os relacionamentos, mas elas também oferecem recursos que possibilitam o que os autores chamam de “remixabilidade”: um processo pelo qual a informação e mídia produzida, organizada e compartilhada pelos indivíduos pode ser recombinada e construída de modo a criar novas formas, conceitos, idéias e serviços. Para Boyd [4], independentemente das críticas de que o termo software social não representa nenhuma evolução tecnológica; de que muitas tecnologias sociais já existem há muito tempo; ou de que uma nova definição é realmente necessária para separar as antigas pesquisas, produtos e práticas dos atuais, o termo software social referencia um conjunto de tecnologias desenvolvidas após a explosão da Web (chamada de pos-web-bust era). Software social pode ser compreendido como um movimento, e não simplesmente como uma categoria de tecnologias nas quais as pessoas são o foco principal. Um movimento no qual houve mudanças significativas na forma como a tecnologia é desenvolvida (e.g., o perpétuo beta), no modo como a participação é disseminada e no modo como as pessoas se comportam. Neste artigo, compreendemos softwares sociais como sistemas que permitem às pessoas, em suas particularidades e diversidades, se comunicarem (interagirem, colaborarem, compartilharem idéias e informações), mediando e facilitando qualquer forma de relacionamento social; sistemas cuja utilidade seja dependente e a estrutura moldada pela efetiva participação, interação e produção de conteúdo por parte dos usuários. Pesquisas em Softwares Sociais Compreender, projetar, desenvolver e avaliar softwares sociais está entre os grandes desafios atuais para a comunidade de pesquisa em computação, pois envolve (e exige) equipes multidisciplinares e interação direta com outras grandes áreas. Na seção anterior mencionamos a complexidade das questões que esses sistemas envolvem e a necessidade de discuti-las sob a luz dos valores humanos de uma sociedade em transformação, onde os usuários não são só consumidores, mas também são criadores; onde a tecnologia deve permitir um envolvimento criativo e considerar os aspectos emocionais da experiência do usuário; onde o compartilhar via Web pode acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar e a partir de sistemas computadorizados embutidos em diferentes objetos. Diversos trabalhos, tais como [10, 13, 23, 30], enfatizam a necessidade de se desenvolver estudos que auxiliem projetistas e avaliadores a lidarem com a complexidade e com os requisitos diferenciados que as aplicações sociais apresentam. Entretanto, ainda faltam propostas, discussões, resultados e validações sobre como compreender, projetar e avaliar softwares sociais. Podemos citar alguns trabalhos como esforços nessa direção. Thompson e Kemp [36] demonstram que os métodos tradicionais de avaliação de usabilidade, como a Inspeção Heurística, não consideram os aspectos tecnológicos e os relacionados à experiência dos usuários presentes nos softwares sociais. Os autores se fundamentam em trabalhos prévios de outros pesquisadores e realizam experimentos identificando que aspectos relacionados à experiência do usuário (como o envolvimento criativo) ou à Web 2.0 (como a qualidade dos conteúdos publicados pelos usuários), apesar de serem fundamentais para definir o sucesso de uma aplicação não são freqüentemente considerados. Como um resultado da pesquisa, os autores sugerem um conjunto de heurísticas complementares. Smith [33] apresenta um framework conceitual chamado Honeycomb Framework. Esse framework é composto por elementos que foram identificados por pesquisadores e profissionais interessados no design e avaliação de softwares sociais (e.g., identidade, grupos, reputação). De acordo com seus criadores, os softwares sociais possuem um conjunto de elementos comuns que são combinados e implementados para produzir ambientes distintos. Em [25], documentamos o surgimento do framework e as principais discussões que ajudaram a evoluí-lo; utilizamos esse framework para a avaliação de um software social; e apontamos aspectos, como os relacionados à sociabilidade, que o mesmo não é capaz de identificar. Como contribuição, sugerimos que novos elementos (e.g., colaboração, objeto) sejam adicionados ao framework de modo a considerar tais aspectos. Lazar e Preece [18] abordam fatores de sucesso e questões de sociabilidade em comunidades online. Para eles, o sucesso de sistemas cuja participação das pessoas é primordial é favorecido pela combinação de softwares bem projetados (usabilidade) com políticas sociais cuidadosamente elaboradas (sociabilidade). Nesse mesmo contexto, de Souza e Preece [9] propõem um framework para compreender e analisar comunidades online. As autoras apresentam quatro componentes-chave das comunidades online que formam a base do framework: pessoas, propósitos, políticas e software; e apontam dois fatores de qualidade: usabilidade (relacionado ao software) e sociabilidade (relacionado aos demais componentes). De Souza e Preece argumentam que avaliar a usabilidade e sociabilidade de comunidades online requer abordagens diferentes daquelas aplicadas para avaliar softwares utilizados por apenas um usuário, e que uma vez que sejam moldados são relativamente estáveis. Mudanças pequenas na sociabilidade (e.g., na moderação) ou de usabilidade (e.g., a forma como uma política é descrita e apresentada na tela) podem causar efeitos profundos. Assim, o framework proposto visa apoiar avaliadores, designers, moderadores e usuários a identificar e compreender problemas de sociabilidade e usabilidade em comunidades online ou outro software que permita interação social online. De acordo com nossa revisão de literatura, podemos considerar comunidades online como sendo comunidades constituídas e mediadas por softwares sociais, de modo que as discussões em torno desse tópico também são pertinentes aos softwares sociais de uma forma geral. VALORES EM SISTEMAS COMPUTACIONAIS No contexto de sistemas computacionais, Friedman [11] considera que o custo para disseminar uma tecnologia é insignificante quando comparado ao custo para desenvolvêla, de modo que os valores embutidos nas suas implementações são profundos e sistemáticos e, portanto, facilmente difundidos. Friedman et al. [12] definem valor como algo que uma pessoa, ou grupo de pessoas, considera importante na vida. E, segundo Friedman [11], embora a falta de atenção aos valores morais em qualquer organização seja perturbador, isso é particularmente prejudicial no projeto de tecnologias computacionais, pois, diferentemente das pessoas com as quais podemos discordar sobre valores e seus significados, dificilmente podemos fazer o mesmo com a tecnologia. Por isso, ao projetar tecnologias computacionais é preciso enxergar os valores humanos de um ponto de vista ético. Para Norman [24], todo produto possui um componente social e identificá-lo corretamente determina se a interação com tal produto será sociável ou não. As pessoas aprendem as habilidades sociais, porém as máquinas, os sistemas, ou qualquer outro artefato tecnológico, precisam que essas habilidades sejam projetadas dentro deles. Nesse sentido, Sellen et al. [3] destacam que os valores humanos, em toda a sua diversidade, deveriam ser classificados de acordo com o modo como eles são apoiados, incentivados ou inibidos pelas tecnologias. Especificamente no contexto de softwares sociais, é preciso questionar quais impactos esse tipo de software causa sobre a vida das pessoas, tanto no aspecto pessoal quanto no social, cultural, econômico ou político. Como os autores expõem, as pessoas não apenas usam a tecnologia, mas vivem com ela. Por exemplo, quando olhamos para um sistema como o ChatRoulette quais valores humanos esse sistema reflete? Quais valores são exaltados, influenciados, ou inibidos pelo sistema? O ChatRoulette é um sistema que conecta aleatoriamente dois usuários e os coloca para conversar transmitindo som e imagem. O único requisito para a utilização do sistema é possuir uma Webcam, não sendo necessário o cadastro ou o aceite de alguma política de uso. Como normalmente há muitos usuários conectados, a diversidade de perfis é muito grande, o que incentiva o usuário a “girar a roleta” para selecionar um novo parceiro. Pelo mesmo motivo, torna-se 1 http://www.chatroulette.com improvável que dois usuários se reencontrem após o contato inicial. Em pouco tempo de uso da ferramenta é possível identificar que os usuários realizam o julgamento do outro com extrema rapidez — praticamente no momento em que a imagem é carregada já se solicita um novo contato. Também se percebe que tanto conteúdos pornográficos quanto usuários com cartazes dizendo não à pornografia são frequentes. Deste modo, em uma primeira análise é possível dizer que o sistema reflete favorecer interações efêmeras, uma vez que não exige cadastro ou outra informação que identifique os usuários ou que comprometa de forma explícita sua privacidade. O sistema também mantém o controle do usuário sobre o conteúdo que está sendo transmitido (imagem, som e texto) — embora não exista controle sobre o conteúdo que se está recebendo. Ele também apresenta suas funcionalidades de forma simples e prática. Essa sensação de efemeridade e de proteção à privacidade (real ou imaginária) colabora para que os usuários troquem de parceiro muito rapidamente. Não há a preocupação com os impactos que a “rejeição da imagem” do outro possa causar, tampouco há a construção de laços sociais originados de uma interação contínua. Por outro lado, esse julgamento instantâneo promove a criatividade dos usuários na tentativa de manter a atenção do outro por um tempo superior ao chamado “piscar de olhos”; assim como a facilidade de uso e o controle sobre o que se está transmitindo pelo sistema promovem um sentimento de autonomia no usuário. Com este exemplo, não pretendemos discutir o sistema de um ponto de vista ético, mas demonstrar que o mesmo carrega valores embutidos e que a forma como ele é projetado reflete esses valores, promovendo-os (privacidade, autonomia) ou inibindo-os (reciprocidade, confiança, relacionamento). Além disso, percebe-se que os valores são interativos e que nem sempre é claro como encontrar um equilíbrio quando há conflitos entre os mesmos. Muitas vezes é preciso restringir alguns valores em função de outros (em sistemas críticos o valor de autonomia pode ser restringido em função da priorização do bem-estar e da segurança). Porém, este exemplo também evidencia que é necessário considerar o relacionamento entre valores morais, éticos, sociais e técnicos, levando em conta quem são os usuários, o contexto de uso e as tecnologias envolvidas. Friedman et al. [12] apresentam uma abordagem, denominada Value Sensitive Design (VSD), que visa considerar valores no design de sistemas computacionais. Os autores propõem uma metodologia que envolve investigações conceituais, empíricas e técnicas, e apresentam sugestões práticas para a sua aplicação. Exemplos: 1) começar com um valor, uma tecnologia ou um contexto de uso; 2) identificar os stakeholders diretos e indiretos; 3) identificar os possíveis benefícios e prejuízos para cada grupo de stakeholder; 4) mapear os benefícios e prejuízos em valores correspondentes; 5) conduzir uma investigação conceitual dos valores-chave identificados; e 6) identificar potenciais conflitos de valores. Os autores sugerem ainda uma lista com 12 valores de importância ética para orientar o processo de investigação (e.g., bemestar, privacidade, confiança, cortesia etc.). Cotler e Rizzo [8] basearam-se nas diretrizes de VSD para avaliar redes sociais online do ponto de vista de valores humanos. Os autores destacam que as redes sociais, em geral, promovem o valor de visibilidade e falham tanto em proporcionar privacidade aos usuários quanto em deixá-los cientes das ações que eles executam e das possíveis implicações dessas ações. Nesse contexto de avaliação de sistemas, Le Dantec et al. [19] apontam que a metodologia VSD privilegia valores de importância ética já conhecidos e especificados desfavorecendo o processo de descoberta de novos valores (e.g., valores técnicos). Para os autores, é necessário realizar investigações empíricas antes de aplicar a metodologia, de modo a favorecer a descoberta de novos valores. Na próxima seção, apresentamos um conjunto de 27 valores resultante de uma investigação da literatura sobre softwares sociais. Apresentamos esses valores classificados de acordo com os níveis da Cebola Semiótica [35] e demonstramos que eles podem ser compreendidos como um conjunto abrangente para guiar uma análise de softwares sociais orientada a valores. Valores em Softwares Sociais A identificação dos valores relacionados ao contexto de softwares sociais foi realizada por meio de uma revisão da literatura. Foram selecionadas três revistas e três conferências de acordo com sua tradição e importância nas áreas de Computação (com maior foco em IHC) e Educação (devido a crescente discussão sobre o design de tecnologias para o apoio ao ensino-aprendizagem que promovam a interação social). As Revistas Computers & Education e British Journal of Educational Technology (BJET) foram selecionadas devido a sua tradição e fator de impacto, enquanto a revista Educational Technology & Society, foi selecionada por abordar explicitamente o aspecto de “Sociedade” e por possuir edições especiais dedicadas ao tema de software social. As conferências International Conference on Human-Computer Interaction (HCII), Conference on Human-Computer Interaction (IFIP TC13INTERACT) e Conference on Human Factors in Computing Systems (ACM CHI) foram selecionadas de modo a considerar três das mais importantes e abrangentes conferências internacionais na área de IHC. Inicialmente, a pesquisa considerou todos os artigos científicos publicados nas revistas e nas conferências citadas nos últimos 5 anos, bem como artigos publicados nos últimos 10 anos nas revistas selecionadas e categorizados com os seguintes termos: Web 2.0, social Web, social software, social network e life-long learning. Para outras revistas e conferências também foram efetuadas pesquisas sobre os artigos publicados utilizando os mesmos termos. Esse levantamento inicial resultou em uma quantidade superior a 2.000 artigos. Na primeira etapa foram pré-selecionados, de acordo com sua relevância, 136 artigos científicos. Na segunda etapa, uma análise detalhada dos artigos pré-selecionados determinou um conjunto final composto por 43 artigos. Para classificar os valores identificados na revisão da literatura construímos o seguinte mapeamento: de Souza e Preece [9] sugerem que, pessoas, propósitos, políticas e software são componentes-chave de comunidades online, e que usabilidade e sociabilidade são fatores qualitativos que impactam em seu sucesso. Preece [27] utiliza o termo sociabilidade para se referir às interações sociais de uma forma geral, e usabilidade como referência ao que ocorre no nível de interface de software. Na teoria da Semiótica Organizacional (SO) [20], uma organização e seu sistema de informação são considerados como um sistema social no qual os comportamentos humanos são organizados por um sistema de normas. Assim, qualquer artefato tecnológico (e.g., um software social) está embutido em um sistema formal que, por sua vez, existe no contexto de um sistema informal. A Cebola Semiótica [35] é um artefato da SO que representa esses três níveis: o informal — onde a cultura organizacional, costumes e valores são refletidos como crenças, hábitos e padrões de comportamento individual de seus membros; o formal — no qual regras e procedimentos são criados para substituir significados e intenções; e o técnico — que representa o sistema computacional situado dentro do nível formal [23]. Deste modo, podemos mapear os componentes-chave de de Souza e Preece [9] para os níveis da Cebola Semiótica, de modo que: Pessoas e Propósitos sejam relacionados ao nível Informal; Políticas ao nível Formal; e Software ao nível Técnico (ver Figura 1). Figura 1. Mapeamento dos componentes-chave de comunidades Online para os níveis da Cebola Semiótica. O mapeamento ilustrado pela Figura 1 mostra uma corelação dos componentes-chave de comunidades online com os três níveis da cebola semiótica. Como o contexto de software social abrange o contexto de comunidades online, isso indica que um esforço em identificar e classificar componentes (valores) relacionados a softwares sociais deve considerar questões de aspectos informais, formais e técnicos de forma sistêmica. Esse mapeamento nos permite representar uma quantidade maior de componentes. Por exemplo: i) além de usabilidade, acessibilidade e estética também são fatores qualitativos que impactam no sucesso de um software social; ii) o conceito de sociabilidade precisa ser decomposto (e.g., conversação, relacionamento) e aspectos individuais precisam ser considerados de forma explícita. Assim, classificamos os valores identificados em nossa análise de literatura de acordo os níveis da Cebola Semiótica e os abordamos como valores pessoais (nível informal), sociais ou coletivos (nível formal), e técnicos (nível técnico). A Tabela 1 descreve esses valores e a Figura 2 ilustra a sua classificação. Tabela 1. Valores pessoais, sociais e técnicos. Valor Descrição Ref. Autonomia Capacidade de uma pessoa decidir, planejar e agir do modo que ela acredita auxiliá-la a alcançar seus objetivos. Capacidade de controlar a tecnologia e usá-la a seu favor. [12, 12, 29] Confiança Extensão até a qual o sistema, ou outros indivíduos, se comportam da maneira esperada por determinada pessoa. Ex: o sistema compartilha apenas as informações solicitadas pelo usuário. [7, 10, 12, 15] Consentimento Informado Situação de ciência de um indivíduo sobre as ações possíveis de serem executadas e os impactos dessas ações. Ex: o indivíduo concorda em executar um programa mesmo depois do aviso do sistema operacional sobre os riscos de tal operação. [11, 12] Emoção e Afeto Sentimentos, sensações de um indivíduo, tais como bem-estar, prazer, diversão, tranqüilidade, envolvimento, aborrecimento, decepção. Ex: medo do usuário em sofrer perseguição por causa de informações expostas no sistema. [6, 24, 29, 30] Identidade O “eu” (self) do indivíduo; a expressão de elementos da personalidade e da individualidade de uma pessoa. Ex: representação do perfil de uma pessoa, suas atividades, informações pessoais, etc. [4, 5, 17, 28, 37] Presença Diz respeito à pessoa estar (ou não) em determinado lugar, em um determinado tempo. Ex: usuário está online no sistema. [25, 31] Privacidade Uma exigência ou direito de um indivíduo em determinar quais informações a seu respeito podem ser expostas e quem pode ter acesso a elas. Ex: mostrar a lista de amigos de um indivíduo apenas para as pessoas que já fazem parte dela. [5, 8, 15, 30] Reciprocidade Sentimento de recompensa ou benefício mútuo com o executar de uma tarefa ou emprego de algum esforço. Ex: o usuário colabora com um conteúdo de qualidade e recebe acesso a conteúdos extras de outros usuários. [16, 26, 27] Reputação Percepção construída de um indivíduo pelos outros. Ex: o indivíduo expert em uma área específica; indivíduo conhecido por enviar spams. [12, 14, 29] Visibilidade Possibilidade de um indivíduo poder ser encontrado, visto, de existir em um determinado contexto. Ex: um usuário com muitos contatos em uma rede social está mais visível que outro que não possui contatos. [8, 28] Normas, Regras e Políticas Aspectos formais que regem, regulamentam e determinam como os indivíduos se comportam, pensam, fazem julgamentos e percebem o mundo. Ex: termos e condições de uso do sistema. [10, 27, 35] Colaboração Possibilidade de cooperar, trabalhar em conjunto sobre um mesmo objeto. Ex: os usuários criam, editam e avaliam um artigo em conjunto. [5, 9, 37] Compartilhamento Possibilidade de um indivíduo disponibilizar a outro(s) individuo(s) objetos ou informações de sua posse. Ex: publicação de fotos em uma de rede social. [4, 7, 26] Conversação Possibilidade de dois indivíduos, ou um grupo de indivíduos, estabelecerem comunicação direta (síncrona e/ou assíncrona). Ex: comentários, chat. [25, 37] Grupos Conjunto de indivíduos com alguma característica, situação, propósito ou interesse em comum. Ex: grupo de pessoas interessadas em Semiótica. [28, 37] Objeto Artefato em torno do qual as interações sociais ocorrem (e.g, as discussões surgem, o foco é mantido, as conversas se iniciam, a colaboração acontece etc.). [17, 25, 26] Relacionamento Algum tipo de ligação, laço social, entre dois ou mais indivíduos. Ex: amizade, seguidores, fãs, etc. [15, 29, 31, 35] Propriedade (posse) Direito de posse sobre um objeto ou informação, e sobre as ações que podem ser executadas sobre esse objeto. Ex: o usuário cria um documento, o modifica, compartilha, transfere para outro usuário, etc. [12, 30] Acessibilidade Capacidade de atender, de forma satisfatória, a um conjunto heterogêneo de usuários, com habilidades, preferências, necessidades, e limitações motoras e cognitivas distintas. Ex: o sistema oferece meios alternativos de cadastro que não exige que o usuário possua uma conta de e-mail. [29] Adaptabilidade Possibilidade de alterar uma aplicação de acordo com o seu contexto de uso; flexibilidade de um sistema em ser adaptado a diferentes contextos, situações de uso não previstas ou que sofreram alterações. Ex: o usuário pode adicionar/remover atalhos para as funcionalidades mais usadas de um sistema. [5, 7, 10, 23, 29] Aparência (estética) Característica relacionada à atratividade, beleza, cuidado com a imagem e o modo como as coisas são exibidas, apresentadas. Ex: interfaces padronizadas com elementos gráficos bem projetados. [3, 24] Awareness Percepção individual e coletiva sobre quem está disponível; quem está fazendo o quê, o que aconteceu e o que está acontecendo etc. Ex: usuário é informado das novidades que existem desde seu último acesso. [7, 8] Disponibilidade Refere-se ao sistema, recurso ou funcionalidade, estar disponível para uso a qualquer momento e sem interrupções. [14] Escalabilidade Capacidade de suportar um crescente número de usuários e de lidar com uma crescente quantidade de informação. Ex: o sistema é capaz de suportar milhões de acessos e de comunicações simultâneas sem apresentar problemas. [4, 10, 14] Portabilidade Possibilidade de utilizar o sistema, seus recursos e funcionalidades, por meio de diferentes dispositivos e em diferentes plataformas. Ex: acesso pelo celular; compatibilidade com diferentes browsers. [14, 30] Segurança Diz respeito ao quão bem o sistema protege a informação que contém, seja de ataques externos, seja de possíveis falhas técnicas. Ex: as informações pessoais de um indivíduo não serão perdidas nem compartilhadas de forma não desejada. [15, 29] Usabilidade Refere-se a interfaces consistentes, controláveis e previsíveis, de uso fácil e satisfatório. [12, 18, 29, 37] A Tabela 1 apresenta os valores, uma descrição e as referências mais significativas cujas discussões permitiram a identificação desses valores. É válido mencionar que, assim como as listas, fatores de sucesso e elementos, tais como [6] [10] [12] [14] e [18], os 27 valores pessoais, sociais e técnicos listados e descritos na tabela acima não formam uma lista exaustiva e definitiva. Valores mais abstratos, tais como, solidariedade, bem-estar, envolvimento, satisfação e outros aspectos relacionados à experiência do usuário estão sendo representados pelo valor “Emoção e afeto”. Também não se pode garantir que os aspectos sociais (e.g., a sociabilidade decomposta em outros valores) e técnicos estão todos cobertos pelos valores citados. De fato, os valores selecionados visam fornecer uma lista tão diversa e abrangente quanto possível, sem torná-la demasiadamente complexa ou detalhada. Figura 2. A classificação dos valores em três níveis. O objetivo da Tabela 1 e da classificação dos valores ilustrada pela Figura 2 é servir como uma heurística para a sugestão de valores que devem ser considerados durante uma investigação. Essa lista se diferencia das demais previamente citadas em dois pontos: na quantidade e na diversidade de valores identificados. Além de essa lista mostrar um conjunto maior de valores envolvidos no contexto de softwares sociais, ela chama a atenção tanto para aspectos pessoais, éticos e sociais, quanto para aspectos técnicos que possam exercer algum tipo de influência ou impacto nos sistemas, em seus usuários e na sociedade de uma forma geral. Para situar as discussões deste artigo em um contexto prático, apresentamos na próxima seção a análise baseada em valores de uma rede social inclusiva. ESTUDO DE CASO O sistema Vila na Rede é uma rede social inclusiva [3] construída para e com cidadãos brasileiros. O sistema é resultado de um projeto que visa estudar e propor soluções para os desafios de design de interação e interface de usuário no contexto de sistemas para o exercício da cidadania, contribuindo para a promoção de uma cultura digital na sociedade. O Vila na Rede foi concebido para ser uma rede social que proporcione um ambiente útil, acessível e agradável aos usuários, no qual eles se sintam confortáveis e com o qual possam se identificar; um sistema que faça sentido aos usuários [2]. O sistema permite que seus usuários se comuniquem (de forma síncrona e/ou assíncrona), criem conteúdos, utilizem diversas mídias, colaborem com outros usuários na criação de conteúdos, troquem ideias, opiniões etc. A principal 2 http://www.vilanarede.org.br diferença do sistema Vila na Rede quando comparado a outros sistemas de redes sociais é que ele foi pensado para a diversidade de usuários presente na população brasileira considerando suas limitações e habilidades (usuários sem experiência no uso de computadores, idosos, pessoas com deficiências, usuários não letrados, etc.). Além de participarem da construção do sistema, por meio de suas interações e conteúdos produzidos, os usuários são os responsáveis por manter a continuidade e a utilidade do sistema. Portanto, as características do Vila na Rede de apoiar a interação social e a diversidade, possibilitar a autoexpressão, depender do comportamento e das ações dos usuários para oferecer benefícios e ter sido desenvolvido com a participação dos usuários, nos permitem classificá-lo como um software social. Utilizando como guia a metodologia sugerida por Friedman et al. [20] (ver Seção 3), o primeiro passo de nossa análise envolve escolher possíveis valores como ponto de partida. Pela descrição do sistema e de seus propósitos já é possível identificar valores dos três níveis: informal (autonomia, emoção e afeto), formal (conversação, colaboração), e técnico (usabilidade e acessibilidade). Na sequência, identificam-se os stakeholders diretos (os usuários do sistema: cidadãos brasileiros, em sua maioria pessoas com baixa exposição à tecnologia) e indiretos (a sociedade brasileira no seu contexto geral). Os próximos passos são: i) tendo em mente os valores inicialmente escolhidos, especificar os benefícios e prejuízos que o sistema pode causar, ou trazer, para os stakeholders; ii) mapear cada benefício e prejuízo aos valores que eles impactam. Alguns deles são listados a seguir: 1) O sistema foi desenvolvido levando em conta as limitações e diversidade dos usuários, portanto, ele colabora para a criação de uma cultura digital e para a inclusão desses usuários. Aqui estão envolvidos os valores de autonomia, emoção e afeto, identidade, acessibilidade e usabilidade. 2) O sistema possibilita que os usuários conheçam novas pessoas e mantenham contato de forma prática com pessoas que convivem em um mesmo espaço geográfico (e.g., bairro) ou compartilham de um mesmo contexto (e.g. trabalham em cooperativas). Aqui identificamos os valores de identidade, conversação, relacionamento, grupos e visibilidade. 3) Os usuários têm a oportunidade de se ajudarem, seja a criar e divulgar conteúdos ou a utilizar o próprio sistema. Os valores que podem ser relacionados a este item são: objeto, colaboração, reciprocidade, emoção e afeto (solidariedade) e confiança. 4) Ao utilizarem um sistema de rede social os usuários estão expostos à ação de indivíduos que podem obter informações pessoais e utilizá-las para fins indesejáveis. Aqui identificamos os valores de identidade, visibilidade, privacidade, consentimento informado, segurança e reputação. Depois de feito o mapeamento é necessário realizar uma investigação conceitual dos valores identificados. A tabela 1 é um ponto de partida para essa etapa. Finalmente, é preciso identificar os potenciais conflitos entre os valores levantados. Uma vez identificados os conflitos e tendo claro seu impacto, uma investigação técnica pode ser realizada para determinar como o sistema deve ser construído (ou reestruturado), de modo a lidar com os conflitos existentes e efetivamente refletir os valores desejados. A seguir, descrevemos dois exemplos de análise conceitual no contexto do sistema Vila na Rede: um no qual há conflitos entre valores (promover um valor impacta negativamente em outros valores) e outro no qual há dependências entre valores (a consideração de um valor só é alcançada por meio da consideração de outros valores). Como o sistema Vila na Rede foi construído levando em consideração o que Baranauskas [3] chama de Socially Aware Computing: “teoria, artefatos e métodos que devem ser articulados para efetivamente fazer o design socialmente responsável, participativo e universal como processo e produto”, os exemplos a seguir apresentam também a solução implementada pelos designers do sistema para resolver os conflitos e considerar os valores desejados. O conflito: Visibilidade vs. Privacidade: este é um dos conflitos mais críticos em websites de redes sociais. Em geral, para “existir” em um sistema de rede social um indivíduo precisa se cadastrar e preencher algumas informações básicas que ficam disponíveis em um perfil. Porém, a visibilidade desse indivíduo possui relação direta com a informação que ele deixa publicamente disponível (e.g., dados pessoais, lista de contatos, grupos), com as interações que ele mantém (e.g., colaborações com outras pessoas) e com os resultados dessas interações (e.g., conteúdos publicados). Ou seja, quanto maior a quantidade de informação abertamente acessível gerada pelo usuário, maior tende a ser a sua visibilidade. Conseqüentemente, quanto mais informação esse usuário deixar disponível na rede, menor é o controle sobre sua privacidade. O problema desse conflito é que as pessoas normalmente não estão cientes dos riscos inerentes à disponibilização de informação na Web, e tampouco os sistemas de redes sociais alertam sobre esses riscos ou auxiliam os usuários a perceberem quais informações eles estão deixando disponíveis [8]. Nesse caso, percebe-se negligência também com relação ao valor consentimento informado, uma vez que os usuários não são requisitados para confirmar a disponibilização da informação e nem avisados sobre o fato. No sistema Vila na Rede o balanço entre os valores privacidade e visibilidade é proporcionado justamente pelo valor consentimento informado. Por exemplo: no momento em que o usuário está se cadastrando no sistema ele especifica quem poderá visualizar seu perfil (e.g., todas as pessoas, apenas usuários do sistema, somente o próprio usuário). Além disso, o sistema exige do usuário apenas três informações (nome completo, nome de usuário e senha) não obrigando que sejam informados outros dados pessoais. Da mesma forma, ao criar qualquer conteúdo para ser publicado no sistema, o usuário pode especificar quem poderá ver esse conteúdo e quem poderá colaborar na sua criação. Como reforço, o sistema disponibiliza ainda recursos de meta-comunicação que explicam para os usuários o que são essas opções de configuração e para que elas servem. Ao não exigir informações pessoais do usuário o sistema promove os valores privacidade e confiança. Do mesmo modo, os recursos disponibilizados pelo sistema permitem que o usuário controle a visibilidade de suas informações, sejam instruídos sobre a finalidade desses recursos e sobre como utilizá-los, promovendo assim os valores consentimento informado, privacidade e autonomia. As dependências para proporcionar Autonomia: o valor de autonomia está relacionado com a capacidade de uma pessoa de controlar a tecnologia e usá-la a seu favor. Para Friedman [11], proteger a autonomia significa fornecer aos usuários o nível apropriado de controle sobre suas máquinas. No contexto do Vila na Rede, o sistema foi projetado de modo a fazer sentido para os usuários. Os recursos existentes, os ícones utilizados para representá-los, os termos empregados, todos foram identificados e escolhidos em oficinas participativas [3, 29]. O sistema leva em conta a diversidade de usuários e oferece recursos para apoiá-los. Por exemplo, os usuários não precisam possuir uma conta de e-mail para se cadastrar no sistema; também não é preciso que os usuários tenham conhecimento sobre como organizar arquivos no sistema operacional para postar uma foto: basta possuir uma Webcam e o sistema já captura a imagem e a exibe para que o usuário escolha se deseja postar aquela imagem ou capturar outra. O sistema também possibilita que os usuários ajustem a interface de acordo com suas preferências (e.g., alterem o menu, o tamanho do texto, o contraste das cores, etc.). Esses são exemplos de recursos que refletem os valores de usabilidade, acessibilidade e adaptabilidade. Outros dois exemplos de apoio à autonomia são: i) Os recursos de meta-comunicação (em várias mídias: áudio, vídeo, imagens ou Libras) que explicam como o sistema pode ser utilizado, o que são e para que servem os recursos disponíveis, e apóiam os usuários de forma contextualizada no momento em que eles estão executando uma tarefa ou tendo alguma dúvida; ii) O apresentador virtual, que lê o conteúdo postado pelos usuários no sistema e permite que usuários não letrados ou com problemas visuais tenham acesso a informação. Com um sistema acessível, fácil de utilizar, com alternativas para pessoas com necessidades especiais e com recursos que oferecem apoio ao usuário durante sua interação com o sistema, o conjunto de recursos oferecidos pelo Vila na Rede maximiza as possibilidades de que os usuários, em seus diferentes contextos, particularidades e limitações, consigam utilizar o sistema de forma efetiva e autônoma. Isso é especialmente importante em sistemas relacionados ao exercício da cidadania, onde a tecnologia não pode discriminar ou privar os cidadãos de seus direitos e, portanto, onde a ausência de autonomia impacta na identidade do indivíduo, no seu bem-estar, autoconfiança e em demais valores ligados a afeto e emoção. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os softwares sociais fazem parte das transformações que estão mudando o relacionamento das pessoas com a tecnologia. Os desafios relacionados ao design e avaliação de softwares sociais colocaram questões como design para todos, design socialmente responsável e valores humanos em foco, exigindo que os métodos e práticas tradicionais de desenvolvimento de sistemas computacionais sejam repensados de modo a atender as novas demandas. Neste artigo apresentamos uma discussão sobre softwares sociais utilizando uma abordagem orientada a valores. Essa discussão teve como objetivo: i) rever as definições da literatura para o termo software social; ii) abordar a questão de valores como sendo crítica demonstrando, por meio de exemplos e argumentações, seu impacto no contexto de softwares sociais; iii) e propor um conjunto de valores pessoais, sociais e técnicos para fundamentar a análise de softwares sociais orientada a valores. As discussões sobre o conceito de software social são uma tentativa de esclarecer e delimitar o uso do termo. Mais do que sistemas que conectam pessoas, softwares sociais são moldados (ao mesmo tempo que moldam), adaptados e influenciados pelo comportamento e pelas necessidades de seus usuários, sendo dependentes dos mesmos para terem alguma utilidade e oferecer algum benefício. Como Boyd [4] menciona, o termo software social representa um movimento no qual houve mudanças no modo como os sistemas são desenvolvidos, como a participação é disseminada e como as pessoas se comportam. No que diz respeito a valores, os fatores, as listas, diretrizes ou elementos identificados na literatura normalmente apresentam um conjunto restrito de valores focados em um único aspecto (e.g., ético ou técnico). O conjunto proposto neste artigo é resultado de uma revisão bibliográfica extensiva que abrange tanto aspectos técnicos, quanto éticos, pessoais e coletivos, chamando a atenção para esses diferentes aspectos e servindo como base para orientar designers e avaliadores sobre os valores existentes em softwares sociais. Os exemplos apresentados em nossas discussões demonstram que existem conflitos entre valores e que os mesmos são interativos: dependendo de quais valores são priorizados, do modo como esses valores são combinados e como eles são tecnicamente apoiados, tem-se um ambiente completamente diferente que propicia certos valores ao custo ou em função de outros. Deste modo, investigações conceituais, empíricas e técnicas são necessárias para que se compreenda como esses conflitos e dependências devem ser tratados para que o sistema produzido efetivamente reflita os valores desejados. Mais, os exemplos apresentados também demonstram que é preciso considerar os usuários em todo o processo para que não se corra o risco de desenvolver sistemas que reflitam os valores das pessoas a quem eles se destinam em vez dos valores dos designers do sistema Como agenda de pesquisa na área, apontamos a necessidade de maiores investigações conceituais e empíricas para a construção de uma ontologia que formalize os relacionamentos entre os valores sugeridos neste artigo. Além disso, é necessária a realização de investigações técnicas considerando outros sistemas e recursos técnicos, para identificar como esses valores podem ser tecnologicamente apoiados e, deste modo, refletidos pelas aplicações. Os resultados dessas investigações poderão colaborar para a validação do conjunto de valores proposto e para a utilização desse conjunto na avaliação e no design de softwares sociais. AGRADECIMENTOS Os autores agradecem à FAPESP (#2009/11888-7) e ao Proesp/CAPES por apoiarem parcialmente este trabalho; Agradecimentos também aos colegas do InterHad, TodosNós, GSII e IC-UNICAMP pelas contribuições. REFERÊNCIAS 1. Ackerman, M., The intellectual challenge of CSCW: the gap between social requirements and technical feasibility. Human-Computer Interaction. v.15. 2000. 2. Almeida, L.D.A., Neris, V.P.A., Miranda, L.C., Hayashi, E.C.S. & Baranauskas, M.C.C. Designing Inclusive Social Networks: A Participatory Approach. Online Communities and Social Computing. HCII 2009. LNCS 5621. p.653-662. 2009. 3. Baranauskas, M.C.C., Socially Aware Computing. In ICECE’2009 VI International Conference on Engineering and Computer Education. 2009. 4. Boyd, D. The Significance of Social Software. 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